27 agosto 2007

Desconstrução #8 Sangue, ainda amor


Morria-me nos braços
Pesava
E o sangue
Paciente, ainda quente.

Estrangulava-me com as unhas
Entranhava
E o suor
Migrante, ainda brilhante.

Dilacerava-me nos dentes
Envenenava
E a saliva
Furtiva, ainda intuitiva.

Matava-me com um sopro
Totalizava
E o amor
Incenso, ainda intenso.

24 agosto 2007

Última hora #7 Presidente de multinacional cai em buraco sem fundo


Decorria com toda a normalidade a reunião ordinária da Assembleia Geral da empresa multinacional do sector dos cimentos, Simeplax SA, quando o inesperado aconteceu. Quando intervinha e se preparava para apresentar os resultados do exercício e a distribuição de dividendos, o Presidente do Conselho de Administração desapareceu subitamente num buraco, de cerca de 50 cm de diâmetro, que se abriu debaixo da sua cadeira. Os restantes accionistas, atónitos, acorreram imediatamente ao local onde desaparecera o Presidente, onde puderam verificar que não era possível ver o fundo do buraco. Apesar dos insistentes chamamentos para dentro do buraco, os accionistas não receberam qualquer resposta do desaparecido nem ouviram qualquer ruído que indiciasse que o Presidente tivesse chegado ao fundo do buraco. As autoridades foram imediatamente chamadas ao local, bem como uma equipa de especialistas em buracos sem fundo, não havendo, até ao momento, qualquer explicação para o sucedido. Ao que pudemos apurar, a tese de atentado terrorista foi, desde logo, afastada, dado que a data e o local da reunião haviam sido mantidos secretos até ao dia da sua realização. Tendo em conta o clima de divisão interna que se vem vivendo nos últimos meses na Simeplax SA, há quem alvitre a hipótese de se ter tratado de uma armadilha do grupo de accionistas que se opõe ao actual Conselho de Administração. O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Simeplax SA confidenciou-nos que a reunião foi adiada sine diem até que o Presidente do Conselho de Administração seja encontrado.

22 agosto 2007

Sub-vida #7 Entrevista ao primeiro comprador mundial do mais recente espremedor de limões digital



Estes dois dias de espera à porta do hipermercado valeram a pena?
Sem dúvida. Desde que foi anunciado o lançamento do LEMON EXP DIGI 23, eu mal pude aguentar tanta ansiedade. O LEMON EXP DIGI 22 era muito bom, mas já não tinha pedalada… Para além disso, este é mais fácil de transportar e, assim, posso levá-lo para qualquer lado.

Como conseguiu aguentar aqui dois dias seguidos?
Quem corre por gosto não cansa… Tirei dois dias de férias e montei a minha tenda electrónica aqui à porta, para ser o primeiro.

Era assim tão importante para si ser o primeiro?
Como já disse, a ansiedade era muita. A minha vida começa hoje a fazer um novo sentido. Ser o primeiro dá-me a sensação de dever cumprido.

Por que razão comprou quatro equipamentos?
Um é para mim, outro é para os meus pais, outro é para oferecer à minha mulher e outro é para ficar de reserva, para o caso do primeiro se avariar.

Vai já hoje começar a utilizar o equipamento?
Assim que chegar a casa. Tenho que experimentar todas as funcionalidades, para poder tirar o máximo de proveito.

Como descreve o que sente neste momento?
Uma imensa alegria. Só me lembro de ter sentido algo semelhante quando nasceu o meu filho. Agora desculpe mas tenho que ir andando. Não vejo a hora de chegar a casa.

16 agosto 2007

Marca de baton #10

Desconstrução #7 Ascensão e queda do império da alquimia


Hip. 1

Vladimiro pôs-se a jeito.
José pôs Vladimiro doente.
Niquitâncio pôs José de castigo.
Leonidas pôs Niquitâncio num asilo.
Miquelino pôs-se a milhas.


Hip. 2

A revolução levantou-se cedo e saiu para a rua. A hora de ponta fez-lhe confusão e ficou muito rabugenta. Pior ficou quando perdeu as botas ao final da manhã e teve que contentar-se com as alpercatas que trazia debaixo do braço. Almoçou bem, mas pouco. Comeu uns restos a meio da tarde, para enganar o estômago. Extenuada, sentou-se umas horas a descansar. Jantou numa pizzaria. Não chegou a regressar a casa.


Hip. 3

Para dar a volta ao mundo, a estrada de alcatrão nunca é um bom caminho. Por maior que seja, termina sempre num beco sem saída ou no imenso mar. O melhor é começar por aprender a nadar e desenhar um bom mapa de atalhos.

15 agosto 2007

Aforismo imoral #10


Todo o mundo está transformado num imenso labirinto de espelhos. Após várias encruzilhadas, está o local onde se encontram os manipuladores da orientação dos espelhos: o poder que conta. Para lá chegar é necessário: aço na guarda baixa, dinamite no contra-ataque e veludo no olhar.

Sub-vida #6 Conversa entre um mestre-de-obras e um trabalhador imigrante clandestino


Mestre-de-obras – Então, procuras trabalho?
Trabalhador imigrante clandestino – Sim Sr.
M. O. – Há quanto tempo estás cá?
T. I. C. – Há 3 anos, mais ou menos.
M. O. – Tens papéis?
T. I. C. – Ainda não consegui.
M. O. – Óptimo. O que é que sabes fazer?
T. I. C. – No meu país era médico pediatra, mas como ainda não consegui legalizar-me, não…
M. O. – Certo, certo… e cá, o que é que já fizeste?
T. I. C. – Trabalhei sempre em obras, como servente de pedreiro.
M. O. – Muito bem. O trabalho que tenho para ti é numa obra numa cidade a 130 KM daqui. Partiremos amanhã, às 4h30 da manhã, em transporte da empresa. A duração prevista da obra é de 6 meses. O trabalho começa todos os dias às 6h30, termina às 20h00 e interrompe das 13h00 às 14h00 para almoço. Comes e dormes na obra, no local que te será indicado. Receberás por dia de trabalho um valor, de que será informado amanhã, do qual será descontado o montante referente ao transporte, alimentação e alojamento. Aceitas?
T. I. C. – Sim, Sr.
M. O. – Nesse caso, já sabes, amanhã tens que estar aqui às 4h30. Mais uma coisa, se, durante o período da obra, houver alguma acção de fiscalização em que te perguntem se tens papéis, ficas em silêncio como se não entendesses. Se nos perguntarem, dizemos que toda a papelada referente ao pessoal está nos escritórios da empresa na capital. Nesse momento, se não fores detido, deverás abandonar, imediatamente, a obra e ficas por tua conta. Entendido?
T. I. C. – Sim, Sr.
M. O. – Óptimo.
T. I. C. – Já agora, Sr., estou a tentar trazer a minha mulher e os meus 2 filhos para cá. Se eles chegarem, podem ficar comigo no alojamento da obra?
M. O. – Podem, mas, nesse caso, teremos que descontar mais dinheiro para o alojamento deles. Ok?
T. I. C. – Sim, Sr. Obrigado.
M. O. – Então, até amanhã.
T. I. C. – Até amanhã, Sr.

14 agosto 2007

Última hora #6 Revolta na manif


Terminou de forma insólita a manifestação de ontem à tarde, que assinalava os 118 anos do Dia da Reconciliação Nacional e que juntou, na Avenida Principal da capital, entre 20.000 (números da polícia) e 450.000 (números dos sindicatos) trabalhadores. Pouco antes do início dos discursos de encerramento, um pequeno grupo de manifestantes, aparentemente organizado, furando a segurança, invadiu o palanque e, tomando os microfones, começou a gritar palavras de ordem como: «Vida sim, trabalho não», «Acabou o engano, férias todo o ano», «As fronteiras da nação só interessam à repressão» ou «A burocracia sindical está feita com o capital». O espanto da assistência e dos dirigentes sindicais que enquadravam o desfile foi tanto maior, quanto a manifestação se realizava sob o signo: «Mais e melhor emprego, em nome do interesse nacional». Após os primeiros instantes de surpresa, as forças da ordem foram rapidamente chamadas a intervir e detiveram, não sem resistência, os revoltosos. Os discursos previstos foram, no entanto, cancelados devido, nas palavras de um dirigente sindical, «à deterioração dos microfones e do sistema sonoro, provocada pela resistência oferecida pelos provocadores, o que levou a polícia a ter que intervir com maior vigor». De acordo com o mesmo dirigente, «esta acção provocatória envergonha o nosso povo, que é determinado e lutador, mas ordeiro. Pela nossa parte, daremos toda a colaboração às autoridades para identificar todos os provocadores e trataremos, de imediato, do seu afastamento do movimento sindical democrático».

10 agosto 2007

Desconstrução #6 Hipótese de guião para infinita-metragem


Um quarto obscurecido, tingido por tímidos raios de sol. Uma mulher desperta e levanta-se da cama. Dirige-se para a janela. Tenta, sem sucesso, abrir a janela. Em fúria, agarra no candeeiro de cabeceira e atira-o com força contra a vidraça. Um estilhaço atinge-a no braço esquerdo. Sangra. Curva-se, aflita, sobre o braço atingido pelo estilhaço.

Uma enorme praça. A luz, ofuscando. O sol, crepitando. Um homem perscruta o vazio, felino. Começa a correr. Ao passar por trás de uma mulher velha, vetusta, decrépita, puxa-lhe, com assinalável destreza de movimentos, o cordão de ouro que ostenta ao pescoço. Com a força do puxão, a mulher velha, vetusta, decrépita, cai no chão, sangrando do pescoço e gritando roucamente. O homem continua a correr, até desaparecer.

Uma casa de banho baça, bolorenta. Uma mulher velha, vetusta, decrépita, enche a banheira de água. Quando a banheira se encontra cheia de água, despe-se. Olha-se no espelho, como que à procura de memórias distantes. Entra na banheira cheia de água, com um canivete na mão direita. Senta-se e recosta-se até ficar apenas com a cabeça fora da água. Corta calmamente os pulsos, primeiro o esquerdo, depois o direito. Fecha os olhos. A água ruboriza em poucos instantes.

Um quarto mudo de claridade. Um homem e uma mulher, no chão do quarto, fodem como animais enlouquecidos. Ela, de gatas, face esquerda encostada ao soalho pela mão esquerda dele que lhe pressiona a cabeça, gritando descompassadamente. Ele, por trás, metralhando furiosamente, enquanto lhe pressiona a cabeça contra o soalho com a mão esquerda e lhe bate estrepitosamente, a espaços irregulares, nas nádegas, com a mão direita. Enquanto se vem dentro dela, ele curva-se para a frente e morde-lhe com fragor o lóbulo da orelha direita. Ela grita enquanto sangra da orelha mordida. Ele deixa-se cair para o lado esquerdo, extenuado.

Um corredor estreito, implacável. Quase vazio. Escuro. O único objecto visível é uma cadeira de baloiço colocada no centro do corredor. Convictamente imóvel. Algumas gotas de sangue começam a cair do tecto sobre o assento da cadeira de baloiço. A cadeira de baloiço começa a baloiçar.

Um quarto obscurecido, etc.

01 agosto 2007

Aforismo imoral #9



A melhor resposta ao fetichismo do tédio é a extravagância de não se dar por adquirido.